Recentemente, li na Trip uma
entrevista com Glória Perez que abalou meu preconceito sobre as telenovelas. Me rendi à história dessa escritora que transformou o folhetim em um poderoso instrumento de diálogo: as obras de Glória extrapolam a função do entretenimento, introduzindo discussões relevantes em um produto de grande alcance popular. Ontem fui conferir o encontro com Glória Perez no programa
Quarta às 4 na Biblioteca Nacional e esse é o relato do que ouvi nesse encontro.
Gloria chegou com um enorme sorriso e mostrou faz juz ao título de "Livro vivo", contando as histórias que marcaram as suas obras.
Ela contou que fazia mestrado em História quando foi convidada a ser colaboradora de Janete Clair. Nessa experiência, ela aprendeu a escrever de acordo com o ponto de vista da autora principal. Assim, ela começou a exercitar a capacidade de ver como o outro, o que facilitou a entrada nos personagens que cria.
Partido Alto foi sua primeira novela autoral, mas foi em
Barriga de Aluguel que ela inaugurou um estilo marcante em suas obras: a insersão de causas sociais. Aos poucos, ela foi conquistando o público e a crítica e em 2009, sua novela
Caminho das Índias foi considerada a melhor novela do mundo.
Antes disso, Glória encarou diversas críticas, como quando foi chamada de delirante ao trazer a internet para as telas, quando a comunicação em rede não era popular.
Glória percebeu que o que ela escrevia poderia ser mais que entretenimento ao observar o quanto o público era influenciado pelas novelas. Se a população pode mudar o modo de falar e vestir influenciado pelos personagens era possível propor discussões e observar a resposta imediata da audiência. Ao colocar uma personagem no bairro Encantado, no Rio de Janeiro, Glória tratou de perguntar para a comunidade: como a novela poderia colaborar para melhorar a qualidade de vida daquele lugar? Ao mostrar aquela realidade e constatar que após a novela a comunidade ganhou o ônibus, Glória percebeu a força que sua escrita poderia ter.
Os temas abordados geralmente surgem a partir de uma observação. Em
Explode Coração, por exemplo
, a discussão das crianças desaparecidas foi introduzida na trama quando ela passava na Cinelândia e via mães com fotos de crianças. A personagem que vivia o drama colaborou para que mais de 100 crianças fossem encontrados, durante essa novela. A trama também ajudou a mudar a demora na procura dos desaparecidos. Até então, a polícia só procurava a criança após 48 horas do desaparecimento. É claro que a novela não solucionou o problema, mas colaborou para que as mães que vivem o drama do desaparecimento de um filho tivessem um atendimento humanizado.
Ao dar visibilidade às fotos das crianças desaparecidas, a novela sensibilizou empresários que passaram a ajudar na divulgação das fotos, facilitando o encontro dos desaparecidos para além do período da novela. Assim, o folhetim nas mãos de Glória pode, ao mesmo tempo, promover paixões e mudar a vida de pessoas, inclusive popularizando assuntos que costumavam ficar restrito à academia.
Seguindo o princípio de dar espaço e voz à quem não tem, Glória decidiu abordar os dramas da esquizofrenia e da dependência química. Para isso, o trabalho de pesquisa incluiu ouvir esses grupos e transmitir o que eles queriam dizer. No caso da dependência, ela ouviu que o grande erro das campanhas anti-drogas era tratar as drogas como algo ruim, porque, como isso não condiz com a realidade, não convencia. Ela teve que contar com a autorização das autoridades para criar uma trama onde os dependentes não fossem representados como pessoas sem caráter e ao longo da história mostrou que as drogas minavam o caráter dos personagens. A idéia era que os depedentes passassem a ser vistos como doentes que precisam de apoio e tratamento.
Ao visitar instituições que cuidam de doentes mentais para compor o personagem esquizofrenico, Glória percebeu que a rejeição social, que dificultava inclusive a conquista do emprego, era um problema a ser ressaltado. Glória criou um personagem para diferenciar o psicopata de um doente mental quando aprendeu que um psicopata não tem nenhuma emoção: ele é só racional, enquanto o louco se afoga na emoção de tal maneira que ele não consegue se controlar. Como resultado, Glória recebeu vários depoimentos de psicanalistas afirmando que a novela ajudou no combate ao preconceito e que as família passaram a admitir a doença mental, viabilizando o tratamento.
Ao ser perguntada sobre as razões de buscar temas em culturas distantes, Glória afirmou que na novela O Clone ela discutia a pretensão da ciência ao fazer a clonagem humana porque isso lhe trazia curiosidade, assim como a produção das quimeras: experiências científicas que misturam espécies diferentes. Ao expor esses homens que brincam de Deus, ela buscou como contraponto uma cultura que é muito submissa à Deus.
Ao ser indagada se houve arrependimento em alguma de suas abordagens, Glória afirmou que só escreve sobre temas que despertam paixão. Ela usa a escrita para organizar o pensamento sobre os temas que para ela são curiosos. Assim, não se arrepende das coisas que escreveu porque eram coisas que ela gostaria de refletir.
Sobre a relação ficção e realidade, Glória espera que colaboração dela como novelista seja a de promover a mistura da realidade com a ficção e que essa foi a maneira que encontrou para unir suas duas paixões: história e escrita. A formação como historiadora colabora com o modo respeitoso que ela usa para representar diferentes culturas.
Glória explicou que nunca colocou dramas pessoais em suas tramas porque não teria o distanciamento que julga necessário para escrever.
Uma estudante do ensino médio sugeriu que ela inserisse em suas novelas os problemas da educação pública e Glória gostou da idéia. Ela já discutiu a falta de limite que costuma haver dentro das escolas e nessa ocasião recebeu diversas cartas de pais e professores que vivem problemas semelhantes, mas nunca tratou esse tema de frente. Escrever sobre a escola é caro para ela porque na educação de Glória, seus professores eram como uma extensão dos pais, bastava um olhar para que ela respeitasse.
Glória chamou a atenção dos alunos presentes para o fato de que o folhetim como qualquer outro trabalho pode ser usado para reverter em algum benefício social.
A Gafieira é outra marca registrada das novelas de Glória: "a dança de salão exercita o convívio com o outro. Nessa dança, como na vida, é fundamental a sincronia com o parceiro ou a parceira".
Glória nos contou que nem tudo sai como o planejado. Em
Pecado Capital por exemplo, a trama teve que ser alterada porque os atores que faziam o par protagonista brigaram.
Embora Glória reconheça que o espectador possa aprender com a novela ela não acredita que a televisão possa substituir a escola, mas pode propor um assunto para ser discutido em escala nacional. O cinema, teatro e o livro por serem caros no Brasil não têm a força de alcance de uma novela. "Se a novela educar ela faz algo mais".
Além de trazer discussões, Glória também procura inovar no desfecho dos triângulos amorosos, fugindo das histórias clássicas de Romeu e Julieta. Ela fez isso ao ousar testar a história do amor construído. Quando ela viajou para a Índia, aprendeu uma lição que quis compartilhar: “Nós casamamos com água fria e durante o casamento, a gente faz a água ferver. Vocês casam com a água fervendo que, com o tempo só faz esfriar."
Quando foi perguntada se pretende abordar a história da filha em uma novela, Glória explicou que a única história da vida real que adaptou foi a de Euclides da Cunha. Por ética, ela não trata o drama das pessoas porque respeita a dor do outro.
Glória gosta de surpreender o público porque acredita que quando uma história que é previsível, o público se sente desapontado e desmotivado. Ela faz uma pesquisa de campo com ênfase antropológica: procura conviver com as pessoas para perceber nuances que enriquecerão seus personagens. Glória tenta fazer isso destituída de preconceitos para captar os estranhamentos e os valores das pessoas que deseja retratar.
Considerando a novela como um recorte da vida, Glória procura revelar diferentes culturas ao mesmo tempo em que tenta equilibrar os diversos núcleos. "No mundo você conhece pessoas que estão presas no século passado e outras que estão um século adiante. Gosto dessa diversidade."
Glória não costuma pensar no ator quando está escrevendo a novela. Ela pensa primeiro no personagem e depois decide em que ator ou atriz essa personagem ficará melhor. Ela acredita que tem atores que funcionam melhor com um texto de um autor, por isso a reincidência de certos atores em suas obras. Glória prefere atores que se entregam totalmete para entrar na pele dos personagens que ela cria e admira aqueles que conseguem se fazer sempre diferente enquanto atuam. Para ela, se o ator criticar, não funciona.
Glória também contou como consegue sintonizar a equipe promovendo reuniões e trabalhos de campo com os profissionais envolvidos, para que eles mergulhem na realidade que a novela expõe. Ela também compartilha com os atores as gravações que costuma fazer dos depoimentos para que eles fiquem imersos naquela realidade.
Algumas campanhas que ela levou para as novelas não foram bem recebidas pela audiência. O corte do beijo gay, por exemplo, exemplifica como o preconceito muda o destino de uma trama. A intenção de Glória era mostrar um beijo de amor, mas ela aprendeu com essa experiência e driblou o público ao retomar o tema: fazendo as pessoas se apaixonarem por um personagem e só depois revelando que ele era homossexual. Assim, não houve rejeição. Por isso, ao tratar temas polêmicos, procura se cercar de cuidados. "Há pessoas que pensam que só falar sobre drogas, estamos estimulando o uso".
Embora Glória adore fazer histórias de época como
Ilda Furacão e
Desejo, lamentavelmente não teve oportunidade de escrever uma novela de época. Quando isso acontecer, provavelmente teremos uma visão da Glória historiadora, e a realidade não ficará chapada como costuma acontecer naquelas novelas onde todo mundo pensa, se veste e fala do mesmo jeito. "Se no futuro um arqueólogo encontrar o fóssil do Falcão, não pode tomar como regra geral o mode dele se vestir".
No final, eu e minha amiga Sônia Moreira fomos tietar Glória. Afinal, como aprendi com Nelson Rodrigues, "só os imbecis têm medo do ridículo!"
P.S. O programa Quarta às 4 acontece sempre às quartas-feiras no auditório da Biblioteca Nacional e conta com a curadoria de Vitor Iorio.
Atenção professores: duas turmas de ensino médio da rede pública são convidadas a participar da discussão. Levem seus alunos para participar das próximas discussões.